Não pode, nem deve ser permitida, nos prédios públicos, nas salas dos chefes a afixação, a pregação ou ícone ou símbolos de qualquer religião ou ideologia política, exemplo disso é a recente polêmica aberta sobre a proibição do uso ostensivo de símbolos religiosos por parte dos estudantes na França (mais especificamente do véu das meninas muçulmanas nas escolas públicas) o que mostra como o tema ainda está em aberto. A melhor forma de respeitar a individualidade do servidor e do público, a igualdade de direitos e obrigações dos servidores é banir das salas e prédios públicos toda e qualquer forma exterior de culto ou divindade, seja ela cristã, árabe, muçulmana, judaica, indígena etc. Por que ainda existem símbolos religiosos nas instalações públicas dos poderes executivos, legislativos e judiciários e no dinheiro se louva a deus? Deus é um título e não um nome, assim como juiz é um cargo e desembargador, função. O que tem a ver moeda com religião? Onde está a laicidade do poder público ? Sou contrário à filosofia do Criacionismo como também contrário à do Evolucionismo. Por outro lado sou avesso a um anacronismo existente na Constituição de 1988 que retrocede um século ao pedir a proteção de deus no preâmbulo e elimina o caráter laico desta. Como sabemos, toda organização religiosa limita a liberdade de expressão. Hoje é aceito que a religião é um fenômeno cultural da humanidade que deve ser respeitado e tolerado e não combater a religião em nome da razão, devendo haver uma separação entre Igreja e Estado. Para garantir a liberdade de expressão as instituições do Estado, as salas das chefias devem ser completamente neutras. Porém a laicidade originada da luta anticlerical, da luta contra os grupos religiosos que queriam (e conseguiam) dominar o Estado (reprimindo os partidários das outras seitas), acabou se impondo, mas mesmo hoje, continua tendo interpretações diversas.
A previsão do uso da Bíblia nos regimentos internos das casas legislativas, tanto o regimento comum do Congresso, o regimento da Câmara dos Deputados, quanto o regimento interno do Senado, mas também das Assembléias Legislativas dos Estados e das Câmaras de Vereadores, fazem menção a Deus e ao uso da Bíblia, de maneira que no regimento interno da Câmara se prevê que à mesa da Câmara deve sempre haver à disposição do orador a Bíblia Sagrada. Como cidadão exijo também a presença ali da Tora e do Corão.
Outro exemplo é a fixação de símbolos religiosos em repartições públicas. Estátuas, crucifixos, papéis colados etc. Só para se falar dos símbolos do cristianismo. Lembro-me de um caso em que um intimado que veio depor, era muçulmano e, no cartório da delegacia, em uma cidadezinha do interior do Paraná. Essa discussão que está ocorrendo na Itália e nos Estados Unidos agora era uma discussão que estava posta em Ibitinga. O intimado era muçulmano e estava se sentindo constrangido pelo crucifixo que havia no local.
Um outro caso interessante, envolvendo o presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo, no início dos anos 90, que era evangélico e retirou da sala da presidência da Assembléia o crucifixo. Ele era de uma denominação [ininteligível]. Um grupo de deputados cristãos foi ao tribunal de justiça e o tribunal disse o óbvio:- “uma casa de leis não é uma casa de oração”. Então, se o sujeito quer prestar devoção a uma divindade qualquer, ele o faça em templo destinado a isso ou em espaço privado. Isso no espaço público, porque a discussão poderia ser a seguinte: foi feita uma licitação para adquirir aquele crucifixo? A licitação permitiu que todos os candidatos apresentassem propostas? Uma empresa ligada a alguém de candomblé, que confeccionasse um crucifixo poderia participar? Então, entre um crucifixo, que é um símbolo, e mais, a Constituição fala nos símbolos nacionais, há uma lei federal que disciplina quais são os símbolos nacionais e o crucifixo não está ali. Assim, a presença de quaisquer símbolos religiosos em quaisquer repartições decorre de uma apropriação indevida do espaço público por interesses privados, porque os administrativistas dirão que o particular pode fazer tudo que a lei não proíbe, mas a Administração não. A Administração só pode fazer aquilo que a lei determina e não há lei que determine que o sujeito tenha de afixar um símbolo religioso qualquer numa repartição pública. Se o direito é de todos, então eu, como servidor público, posso deixar ali, sob o crucifixo ou ao lado de uma imagem católica qualquer a imagem de um pai de santo, negro, com velas e defumadores etc. Ou então poderia muito bem colocar lado a lado na mesma ordem a imagem de Maomé e Alá.
Para finalizar, a questão dos feriados. Essa é mais complicada. No ano de 2002, por exemplo, foram dezessete feriados nacionais, porque a lei que determina os feriados fala em feriados civis, feriados religiosos e feriados bancários, que são disciplinados por uma norma do Banco Central, aqueles da quarta-feira de cinzas até o meio-dia, do dia 24 de dezembro até meio-dia. Desse total, em 2002, foram dezessete feriados, dez dos quais feriados católicos. A Constituição refere uma única vez à palavra feriado, mas diz que o país deve celebrar aquelas datas que sejam de alta significação para os diferentes segmentos étnicos da população brasileira. Nem sempre é fácil lecionar Direito Constitucional porque não é fácil responder quando um aluno pergunta sobre os feriados. Porque a pergunta é: um muçulmano - para não me referir aos judeus, interpretação que seria uma assertiva preconceituosa - que queira abrir o seu comércio num feriado católico, que entenda que aquele feriado não tem nenhum significado para a etnia à qual ele pertence, poderia propor uma ação de inconstitucionalidade contra a lei que define o feriado ?
Quero, em primeiro lugar, agradecer aos organizadores desse evento e fazer as minhas saudações aos presentes. Inicialmente, é missão quase impossível falar sobre este tema depois da conferência completa, brilhante, absolutamente competente e substanciosa do professor Dalmo Dallari. Mas, enfim, já sabia, quando li a programação, que falaria após o professor, de maneira que me preparei ao menos para sobreviver a essa experiência. Se não para acrescentar algo, ao menos para sobreviver.
Começarei acentuando o aspecto sobre a dimensão semântica do vocábulo “intolerância”. Na Enciclopédia, considerada o marco intelectual do Iluminismo, Diderot destina um verbete em que, pela primeira vez, surge no discurso da ciência política esse termo. Na realidade, Locke já o havia descrito antes, mas a formulação que Diderot confere ao termo intolerância, como antítese, como termo antagônico à tolerância, entra para a história como a base a partir da qual os Estados, as sociedades chamadas democracias ocidentais ou democracias contemporâneas, iriam formular juridicamente a noção de tolerância ou intolerância.
O professor Dalmo Dallari acentuava um aspecto que, de fato, merece atenção. A noção de tolerância presume um paradigma. Portanto, considero o discurso do outro, seja do ponto de vista religioso, seja do ponto de vista dos valores, do modo de ver, pensar e compreender o mundo, enfim, da cultura a partir de um modelo. Se examinar uma determinada manifestação cultural, há autores que entendem que a religião seria uma manifestação da cultura; há os que, como Durkheim, entendem que poderia haver uma distinção entre manifestação religiosa e cultura, mas há os que entendem que a rubrica cultura pode contemplar a noção de religião. Estou partindo de um determinado recorte, portanto, este olhar, o lugar a partir do qual eu vejo e compreendo o outro, já é por si só discutível e suspeito. No nosso caso, por exemplo, quando na defesa de nossa tese de doutoramento no Programa de Direito Constitucional da PUC, tivemos a felicidade ou a ousadia de escrever a primeira monografia acadêmica na área do direito exatamente sobre liberdade de crença, chegamos a propor que o termo “tolerância” fosse substituído por “transigência”, na medida em que quando trabalho com o termo “transigência” estou operando com concessões recíprocas, renunciando a um paradigma.
De fato, a ideia de tolerância ou de intolerância é problemática, pois se adota um paradigma e, mais à frente, vamos ver que isso se coloca para o Estado de modo muito vigoroso e candente: se é possível ou não a um Estado democrático de direito adotar um paradigma religioso. Vários autores, como Locke na carta a respeito da tolerância, Voltaire, mas também Tocqueville, Hans Kelsen e vários importantes filósofos do direito contemporâneo vão tentar se debruçar sobre essa temática da relação entre o Estado e o fenômeno religioso. É nessa direção que pretendo fazer algumas reflexões e, como o tema deste painel é Tolerância e Cotidiano, quero finalizar essa introdução examinando como no cotidiano o Estado brasileiro lida com esse fenômeno, essa exigência democrática, ética, com esse imperativo não só hipotético, mas também um imperativo categórico do respeito ao outro e do respeito à liberdade e centrar-me, especificamente, na liberdade de crença.
Existe uma certa concordância em termos de que é possível catalogar três modalidades básicas de relacionamento entre Estado e religião. Nessa tipologia, temos o chamado Estado leigo, o Estado confessional e o Estado laico. O Estado confessional é, na história do Ocidente, aquela modalidade de Estado que vai marcar a trajetória das democracias contemporâneas. Nesse Estado, não há uma comparação entre ordenamento civil - Locke, no Tratado sobre o Governo Civil, diz que ao governo civil cabe a preocupação com o cidadão e à confissão religiosa cabe a preocupação com o fiel, de maneira que ambos os ordenamentos incidem sobre a existência humana - mas o Estado deve se ocupar do cidadão nessa dimensão das demandas e necessidades e a confissão religiosa se ocupa do fiel. Neste Estado, não há essa demarcação de áreas de domínio, de áreas de influência, de terrenos nos quais impregnam um discurso ou outro. Há uma simbiose entre ordenamento religioso e ordenamento jurídico - adotando a noção de ordenamento de Norberto Bobbio, entre outros autores.
A esse respeito, é preciso que se diga que, dos cinco séculos de história do Brasil, quatro séculos foram vividos sob o Estado confessional. Mesmo a primeira Constituição da Monarquia, de 1824, nomeou a Igreja Católica Apostólica Romana como a igreja oficial do Estado, norma que irá vigorar até a Constituição da República de 1891, que, a meu juízo inclusive, salvo engano, foi a carta política que mais vigorosamente demarcou os espaços de incidência da norma jurídica e da norma religiosa. Esse seria um exemplo de Estado confessional. Temos exemplos de Estados confessionais, como o Irã, como o Iraque, boa parte dos países do Oriente Médio, alguns estados africanos; na Europa, a Itália e a Espanha, são casos, de certa forma, em que há uma certa ambigüidade do ponto de vista da relação que o Estado mantém com a Igreja Católica. Mas, de todo modo, teoricamente, o Iluminismo - antes dele, inclusive o movimento renascentista - representou uma insurgência teórica e política contra essa ingerência, especificamente no caso da Igreja Católica na gestão da coisa pública. Por isso, o Estado laico e o Estado leigo, podem ser apontados como antíteses do Estado confessional, associados à idéia de república, à idéia de coisa pública, à idéia de que o aparelho de Estado não poderia ser apropriado. O erário, a receita pública, o recurso público e os tributos que vão sustentar materialmente o funcionamento do Estado não poderiam ser apropriados por uma confissão religiosa ou por outra.
A par do Estado confessional, teríamos então o Estado leigo, que a doutrina nacional, mas também a doutrina estrangeira, tem muita dificuldade para proceder a uma demarcação ou para chegar a um acordo sobre o que é Estado leigo ou Estado laico. Há quem diga que o Estado leigo seria um estado anti-religioso, como foi, por exemplo, durante muito tempo, o Estado da antiga União Soviética, no sentido de que o Estado refutava o discurso religioso. Havia uma repulsa, uma negação, quando não um confronto posto institucionalmente, legalmente, juridicamente, a partir do Estado contra o discurso religioso, contra as confissões religiosas. Há também quem aponte Cuba como um caso em que o Estado foi leigo e que, portanto, trata-se de uma modalidade para a qual a condição de fiel não só não interessa como é mesmo negada, reprovada, censurada pelo ordenamento jurídico.
Por fim, o Estado laico, ou o laicismo, é uma expressão que vai nascer com a primeira emenda à Constituição norte-americana, que fixa uma separação, que vai representar no Ocidente a primeira formulação jurídica que demarca o espaço de ação da religião e do Estado. A idéia de laicismo significa que o Estado não se posiciona contra as condições religiosas, significa que o Estado passa a compreender que a crença religiosa, o fato religioso, as confissões religiosas, o culto, a liturgia e a organização religiosa são fenômenos situados na esfera privada, no sentido de que o Estado se declara incompetente para tentar regulamentar ou disciplinar essas matérias.
No Estado laico, o ordenamento religioso e o ordenamento jurídico convivem em relação de independência e autonomia recíprocas, no sentido de que pactuam em termos de que a norma jurídica incide sobre o cidadão e de que a norma religiosa incide sobre a condição de fiel. Se fosse possível pensar essa divisão, essa separação da existência humana, no sentido de que na condição de cidadão, irei me relacionar com o Estado e com os particulares relaciono-me sem que o Estado intervenha, nem no sentido de impor uma determinada crença, nem no sentido de impedir que eu me filie, adote, mude, altere ou faça opções diferenciadas ao longo da minha vida. Para o Estado laico, a noção de liberdade de crença, como derivação da liberdade de consciência, situa-se numa esfera indevassável da existência humana, aquela esfera que Kant chamaria de liberdade interna do indivíduo ou de imperativo categórico de ação moral, ou seja, o indivíduo tem absoluta autonomia nessa seara em termos de ser ateu, agnóstico, em termos de optar por uma religião ou em termos de mudar de religião, em termos de freqüentar, de se associar ou não a um culto, em termos de participar ou não. Trata-se de uma esfera rigorosamente da autonomia privada e o Estado aí tem dois papéis. Primeiro, o papel de proibir a coação, a chamada imunidade de coação. Jorge Miranda e o professor Jônatas Machado, dois autores portugueses, têm se ocupado de modo muito fecundo e brilhante desse tema, falam sobre essa idéia de imunidade de coação, dizendo que o Estado não pode adotar qualquer medida que venha a compelir, coagir, obrigar ou induzir o indivíduo a ter ou não uma crença. Esta é, volto a repetir, uma esfera da autonomia privada, na qual o Estado não tem o direito de se imiscuir.
Segundo, a idéia de Estado laico que implicou, obviamente, o laicismo, requer a separação do Estado e da religião, expressando o reconhecimento por parte do Estado da sua absoluta incompetência para se manifestar a respeito do que seria a verdade religiosa ou os fundamentos da verdade religiosa. O discurso religioso legítimo ou a confissão religiosa reconhecida ou a confissão religiosa certa, errada, normal, satisfatória ou insatisfatória. A idéia de laicismo compreendida como uma obrigação negativa posta por um Estado implica que o Estado deve se abster de se pronunciar neste terreno, que é um terreno, um terreno absolutamente complexo, da relação que o indivíduo faz entre a perspectiva terrena e a prospecção ultraterrena. A diversidade humana vai apresentar um conjunto de manifestações em diferentes partes do mundo que tem determinadas identidades em termos de ritos, em termos de liturgia, como mostrado por um filósofo das religiões por quem luto muito e a quem respeito, um filósofo contemporâneo que é Mircea Eliade, que tem uma produção respeitável a respeito, sobre o fenômeno religioso e as manifestações religiosas.
O Estado laico reconhece formalmente que, em função exatamente desse fenômeno estar situado num terreno indevassado - quando foi devassado, tivemos experiências amargas, como o caso Calaso, o caso Dreyfus, as perseguições religiosas em várias partes do mundo, na África, na Índia e algumas guerras na Europa; segundo alguns especialistas das Nações Unidas, ao menos 75% dos conflitos armados em curso no mundo têm algum verniz de natureza cultural ou religiosa, no sentido de que, se o sujeito tem o interesse econômico, como ocorreu com a chamada guerra Estados Unidos x Iraque, há uma motivação de natureza econômica, o sujeito reveste, traveste aquilo de um discurso aparentemente assentado em diferenças culturais ou religiosas - o Estado laico pretende não se pronunciar, sobretudo não emitir qualquer juízo de validade, de falsidade ou de verdade sobre o que seja o fenômeno religioso.
O Estado brasileiro é um exemplo típico, entre outros, de passagem de uma natureza rigorosamente confessional e legalmente intolerante para o status de uma República laica, que é o que está consignado na Constituição de 1988. As Ordenações do Reino, o Código Criminal do Império, de 1830, o primeiro Código Penal da República, de 1890, a Consolidação das Leis Penais, de 1932 e mesmo o Código Penal vigente, que é de 1940, ainda guarda, aqui ou ali, algum traço de intolerância religiosa. Mas, para que se possa ter uma idéia de que essa transição entre o Estado confessional do ponto de vista institucional e jurídico intolerante, de um Estado confessional para um Estado laico, não é simples, nas Ordenações do Reino, por exemplo, a feitiçaria, a blasfêmia ou a negação da existência de Deus, sujeitavam o autor à pena capital. Retomarei este tema mais adiante.
Esse movimento que vai de um Estado confessional intolerante para um Estado laico, do ponto de vista do tempo histórico, falamos de cinco séculos, vai ter repercussões e impactos consideráveis. A Constituição de 1988 declarou - muito embora volte a dizer que, a meu juízo, a Constituição da República de 1891 foi mais rigorosa do que a atual em termos da demarcação de fronteiras entre Estado e religião - especificamente no artigo 19, inciso um, diz que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada na forma da lei a colaboração de interesse público. Portanto, a Constituição de 1988 fixou e adotou expressamente o princípio da separação entre Estado e Religião e o princípio do laicismo estatal no sentido de que o Estado brasileiro não professa nenhuma religião.
Há um decreto de 1890, assinado por Deodoro da Fonseca, que é o primeiro que vai tentar regulamentar essa relação, que as Constituições várias foram trabalhando de modo muito diferente. A formulação atual é essa, no sentido de que o Estado declara, em primeiro lugar que ele não professa uma religião; segundo, que qualquer grupamento de pessoas que reivindique a condição de uma confissão religiosa e crie uma personalidade civil tem ampla liberdade de funcionamento no país, por mais estrambótica, para usar uma expressão do professor Paulo de Barros Carvalho, um tributarista - e a Constituição assegura imunidade tributária aos templos - por mais estrambótica que seja a religião, no nosso sistema se ela está constituída em conformidade com a lei, e é interessante notar que a Constituição anterior, de 1969, exigia que as confissões religiosas deveriam se ater à legalidade e aos bons costumes; essa expressão “bons costumes” foi suprimida do texto atual, de maneira que o vínculo, o limite de funcionamento das associações religiosas e da confissão religiosa é o da legalidade, ou seja, não infringindo, não vulnerando norma jurídica, aquela confissão religiosa tem ampla liberdade de atuação. Obviamente, ela também deve obediência à chamada polícia administrativa, que são as posturas municipais, as normas de convivência entre vizinhos, como o “Psiu”, aquela lei que fixa um determinado horário para a produção de som num determinado volume. Uma vez obedecida a fronteira da licitude, as confissões religiosas, à luz do sistema jurídico brasileiro, são todas elas iguais. Não há religião oficial, nem religião do Estado, superior, melhor, pior, mais compreensível, menos, mais racional, codificada ou não. Todas elas, para o sistema jurídico vigente no Brasil, são fenômenos religiosos e devem ser respeitadas e tratadas com igual respeito e dignidade.
Entretanto, Habermas é um autor que chama nossa atenção para o fato de que nem sempre a norma jurídica deixa de manter com os valores uma relação de tensionamento. É possível considerarmos que num país que tem cinco séculos de história, quatro séculos vividos sob idéia de confissão, de idéia de religião oficial ou de religião de Estado, não é fácil romper com a idéia de um Estado confessional. Se a norma é laicista, nem os valores nem as práticas estatais o são. Citarei alguns exemplos. Nossa Constituição é laica, mas o preâmbulo faz menção a Deus e o faz de uma forma muitíssimo interessante: “Nós, representantes do povo, reunidos (...) sob a proteção de Deus (...)”. O preâmbulo constatou um fato. O professor Ives Gandra, que confesso nem é exatamente o autor que cito mais nessa seara, diz que o constituinte constatou que os trabalhos feitos de 1986 a 1988 estiveram sob a proteção de Deus. Foi a constatação de um fato. Não se sabe por que razão, de que maneira, mandou-se um e-mail, houve uma resposta afirmativa, enfim, foi feito sob a proteção de Deus. O último atributo que qualquer norma jurídica tem é de constatar um fato, no sentido do que é. A norma jurídica pretende alguma coisa que deve ser, portanto, obviamente, o preâmbulo da Constituição. Ao constatar que os trabalhos da Constituinte foram feitos sob a proteção de Deus isso não quer dizer absolutamente nada, no sentido de elidir ou de enfraquecer o articulado da Constituição que confere à República um caráter rigorosamente laico.
Digamos assim essa tensão de que Habermas fala entre a norma e o valor é um terreno absolutamente delicado. Estamos em uma fase de transição lenta, gradual, segura, espero, para que a norma prevaleça sobre o valor. Porque o problema do valor - e Habermas também nos lembra disso no Direito entre faticidade e validade - o valor é um valor para o grupo. Entendo que o grupo perceba que alguma coisa é razoável, mas o direito como uma proposta de civilização, de instituição de modelos de diálogo entre os seres humanos, pretende que a norma não seja apenas boa para nós, mas boa para todos. Essa é a vantagem entre a norma e o valor. A norma é um pacto por meio do qual uma coisa muito mais importante do que algo bom para nós passa a ser formalmente válida, deva ser levada a sério por todos nós porque presumivelmente é boa para todos nós.
Vou caminhar para a finalização citando três fatos, a meu juízo importantes, que têm a ver com o tema do nosso evento. Primeiro, uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal, por meio da qual o Supremo enfrentou um problema de não pouca importância que é confrontar o direito de liberdade de expressão com a dignidade da pessoa humana, a liberdade de crença, a liberdade religiosa. Um editor de livros do Rio Grande do Sul editou e publicou uma série de livros contendo algumas assertivas, que segundo ele seriam revisões historiográficas e que os judeus entenderam que eram assertivas que incitavam e induziam o leitor a desenvolver um preconceito, uma discriminação contra os judeus. O Supremo entendeu então que a identidade religiosa consubstancia uma identidade étnica e que, portanto, a discriminação religiosa é uma modalidade de prática do racismo, no sentido de que o crime de discriminação religiosa é imprescritível, inafiançável e sujeita o agente à mais severa das penas privativas de liberdade, que é a reclusão e o editor de livros foi condenado. O Supremo manteve a ação porque era uma ação de habeas corpus por meio da qual a defesa desse editor tentava desconstituir a decisão do STJ, que manteve a condenação por crime de racismo.
O segundo caso é o da Ministra de Assistência Social Benedita da Silva. Em maio de 2002, o presidente da República, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin e o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, tomaram aviões, não se sabe bem quem foi que pagou essa viagem, e foram a Roma assistir o ato de canonização da madre Paulina, uma madre que nasceu aqui em uma cidade do interior de Santa Catarina. A Ministra da Assistência Social tomou o avião e foi para Buenos Aires, supostamente cumprir uma agenda política e, de passagem, participou de uma prece com evangélicos em um café da manhã. Para o Direito, ambos, o ato de canonização da madre Paulina ou uma prece entre evangélicos em Buenos Aires, ambos são atos de natureza religiosa, tanto que a vereadora paulistana Claudete Alves protocolizou uma representação, uma petição junto à Presidência da República, perguntando o seguinte: quem financiou a viagem de Fernando Henrique Cardoso a Roma? Por que o Ministério Público Federal está ameaçando, inclusive com uma ação de improbidade administrativa contra a ministra Benedita da Silva, fora o achincalhe, a desmoralização, a humilhação pública, a devolução do dinheiro aos cofres públicos e um gancho a mais para quem está descontente com a presença da ministra no Ministério e um argumento a mais para que ela saia do ministério. Há quem diga que se trata de uma fritura em fogo brando, mas como sou de Minas Gerais, de Três Corações, e essas coisas de política eu não conheço muito, acompanho à distância, não sei se é ou não é fritura, mas, de todo modo, se o Fernando Henrique pode tomar o avião presidencial e ir a Roma assistir à canonização da madre Paulina, ao arrepio da Constituição, porque a Constituição já estava em vigor, a ministra Benedita pode ir a Buenos Aires fazer uma prece num café da manhã. Porque, se sob a égide da mesma Constituição, o Fernando Henrique pode ir a Roma assistir à canonização e a ministra não pode ir a Buenos Aires, foi dispensado à ministra um tratamento diferenciado, que nós queremos crer que não seja pelo fato de ela ser negra, que não seja pelo fato de ela ser favelada, que não seja pelo fato de ela ser mulher, que não seja pelo fato de ela ser evangélica, porque, a rigor não professo a mesma religião dela. Enfim, sob o mesmo regime jurídico, sob o mesmo sistema, o FHC pode ir a Roma e o José Simão com o seu habitual poder corrosivo, chegou a dizer à época que a madre Paulina havia se tornado a padroeira do trem da alegria. O Ministério Público não se pronunciou, nenhum dos partidos políticos, que eram os mesmos no Congresso Nacional, também não se pronunciou, portanto, a resposta que a presidência da República vai dar à representação que a vereadora Claudete Alves fez vai ser muito rica e vai ser muito ilustrativa, do ponto de vista de como é que o valor político dialoga com a norma jurídica.
Por fim, a questão do ensino religioso. Aí, parece-me que há um descalabro, porque a Constituição de 1890 proibia textualmente o ensino religioso, depois vieram as de 1934, 37, 46, 67, 69, lidando de forma diferenciada com o ensino religioso, até chegar a essa formulação que temos hoje, de que o ensino religioso é uma disciplina optativa do ensino fundamental. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) reproduziu inicialmente a norma do artigo 210, parágrafo 1°, mas, seis meses depois, foi alterada, porque, na formulação inicial, a LDB proibia o financiamento público do ensino religioso, em homenagem ao fato de que a Constituição proíbe que o erário possa ser apropriado por qualquer religião. A LDB foi alterada em 1997, permitindo que as unidades federadas pudessem ter competência legislativa e administrativa sobre a matéria, de maneira que, no caso do Rio de Janeiro, está em vigor um concurso público para professor de ensino religioso e o concurso prevê entre as cláusulas do edital pérolas que vou, durante muitos anos, usar em minhas aulas de Direito Constitucional. O concurso foi aberto agora, organizado pela Fundação Cesgranrio, que é uma fundação pública, de direito público, do Rio. Diz a cláusula do edital licitatório: “fica reconhecida à autoridade religiosa o direito de cancelar, a qualquer tempo, o credenciamento concedido quando o professor mudar de confissão religiosa”. A disciplina é optativa, mas o professor vai ser posto permanentemente à disposição. Este é o primeiro problema. Segundo problema: o Estado financia, através do erário, mas quem credencia é a autoridade religiosa. É o resgate do padroado, que aquele decreto de 1890 de Deodoro da Fonseca pôs fim, porque, por meio do padroado, o erário dava uma contribuição mensal, uma espécie de dízimo estatal para a igreja católica. Agora se contrata um professor e a autoridade religiosa, se ele mudar de religião, tira o credenciamento e, portanto, ele será demitido. É uma invasão estatal expressa, desavergonhada, como diria o Paulo Freire, numa área em que ao indivíduo deve ser assegurada absoluta autonomia.
Não quero importuná-los mais com as minhas confusas, enfim, absolutamente limitadas considerações sobre o tema, mas quero finalizar com Diderot, porque iniciei com ele e parece-me que foi um marco na minha formação compreender essa relação entre o Estado e religião. Nesse verbete “intolerância”, que ele escreveu para a Enciclopédia, junto com d’Alembert, Rousseau, Montesquieu etc., ele diz “não nos importamos mais, aqui, em impor os limites precisos da tolerância, em considerar a caridade que a razão e a humanidade reclamam em favor dos errantes, com esta culpável indiferença que nos faz ver sob o mesmo aspecto todas as opiniões dos homens. Pregamos a tolerância prática, não mais a especulativa e, dessa forma, é possível sentir a diferença que existe entre tolerar uma religião e aprová-la”.
Estas imagens chocam você?
Pois imagine então o que você sentiria se vivesse no tempo do Antigo Testamento,
e tivesse de assistir às cruéis matanças que o tal Javé ordenava...
Você teria tido coragem de participar dessas matanças, sujando suas mãos de sangue?
Você teria coragem de matar até as criancinhas dos povos pagãos conquistados,
tal como ordenado por Javé?
...
E o que você sentiria se vivesse no tempo da Santa Inquisição ou das Cruzadas,
e tivesse de assistir as execuções promovidas pelos cristãos
contra os que não acreditavam em seu "amoroso" Salvador?...
...
Queridos, acordem.
É impossível que um Deus infinitamente bom e sábio esteja por trás disso...
Deus não está com a bíblia;
Deus não está com o judaísmo, o cristianismo, ou o islamismo...
Deus está, sim, com a Razão,
e com uma vida de acordo com a Razão.
É tão simples...
Muito obrigado..
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